Entre os objetos resgatados pela artista alemã Ulrika Eller-Rüter está um par de sapatos leves pretos. Só se percebe que são usados ao observá-los por dentro, pois o forro interno, claro, tem algumas fissuras. Os sapatos são chiques, com uma abertura na frente, fazendo entrever as unhas do pé da dona.
Eles ainda estão em boas condições de uso, mas a mulher aos quais pertencem não precisa mais deles: eles não são adequados ao trabalho. Nem para lavar a cozinha do hotel, nem para limpar as verduras, cozinhar ou fazer as camas. Antigamente, essa mulher, agora com 54 anos, costumava usar esse par de sapatos em ocasiões de festa, que não foram muitas em sua vida. Hoje, ela tem que sustentar 11 filhos sozinha, pois o marido é doente e há 18 anos está impossibilitado de trabalhar.
O nome da mulher em questão é mantido em sigilo, em respeito à sua própria vontade – embora ela queira que sua história seja contada para todos ouvirem, relata a artista Ulrika Eller-Rüter. A "dona dos sapatos" teve que fugir na infância, em companhia de seus pais, de Beit Natif. Primeiro para Jericó, depois para a Jordânia, até chegar a Bait Djala, onde acabou se estabelecendo. Ela ficou extremamente grata pelo fato de sua história ultrapassar as fronteiras do lugar onde vive, relata Eller-Rüter.
Sapatos de noivado, futebol, funerais
A artista retratou diversas mulheres palestinas, concentrando-se, para isso, não em seus rostos, mas em seus sapatos. "O solo da Palestina está ocupado por todos os lados, pelo menos esta é a minha experiência. Por isso, quis saber o que o solo tem a me contar. E quem pisa o chão? Os sapatos, as pessoas. Foi assim que tive a ideia de mostrar os calçados como arquivos de histórias e biografias", fala a artista de 49 anos, que é também professora de Artes. Para isso, ela transportou para a Alemanha 12 pares de sapatos de mulheres palestinas.
Os objetos estão expostos no momento no Museu das Mulheres, em Bonn, compondo a mostra Tell me the story about your shoes (Conte-me sobre seus sapatos). "Fui assomada por uma profusão de histórias realmente profundas. Fiquei surpresa com o grau de abertura com que as mulheres chegavam a mim. Em 15 minutos, elas revelavam seus mais profundos segredos", diz Eller-Rüter. A artista recolheu material para seu projeto em diversas localidades palestinas, entre elas Bait Djala, Al Ubiedyeh e Ramallah.
As mulheres que encontrou eram tão distintas entre sis como suas histórias e seus sapatos, conta Eller-Rüter. "Há ali os sapatos do noivado ou os comprados com o primeiro salário, para presentear a mãe. Uma das mulheres trabalhou em um lar para meninos e jogava bola com eles sempre às quintas e sextas-feiras. Não há nenhum sapato escolhido aleatoriamente", afirma a artista.
Através dos calçados, ela se deparou também com muitas histórias de sofrimento, como por exemplo a de uma mulher que não pode visitar seu afilhado em Jerusalém, porque não consegue passar pelos postos de controle. Ou daquela cujo filho mais velho caiu de uma janela e morreu.
Encenações através dos sapatos
São histórias que não se espera ouvir, ao falar de algo supostamente tão trivial como sapatos. Eller-Rüter constatou, todavia, que eles têm um significado especial na Palestina. "As mulheres andam com o véu muçulmano, cobertas até o tornozelo. Os sapatos são, digamos assim, o local de encenação", define.
A artista conta que viu mais sapatos de salto alto nas ruas de Ramallah do que já vira na Alemanha. Ela está convencida de que os sapatos também poderiam contar muitas histórias em seu país, embora este seria outro projeto. "Talvez pudesse ser um retrato do consumo, dependendo de quem fosse entrevistado. Busquei histórias de sapatos na Palestina porque me interessou a ligação com o solo, que ali é carregado de significado histórico."
Embora as mulheres envolvidas no projeto quisessem contar suas histórias, seria constrangedor para elas ter seus destinos expostos, identificados com seus nomes e fotos, explica Eller-Rüter. Mas ela encontrou um meio de trazê-las no museu, embora mantendo-as anônimas. Como não podia fazer gravações de áudio ou vídeo, nem fotografar os rostos das mulheres, ela as registrou de costas.
Porém a representação não é estetizada, em óleo sobre tela: na opinião da artista, isso seria inapropriado às histórias de dor, desemprego e restrições. "Procurei um material com o qual pudesse gravar e tornar visível aquilo que corrói. Foi assim que cheguei à minha atual técnica, em que trabalho com ácido clorídrico sobre chapas de ferro", descreve Eller-Rüter.
Há uma conformidade entre forma e conteúdo: o ácido corrói a chapa, da mesma forma como os golpes do destino dilaceram as biografias. O ácido esboça trajetórias enferrujadas. Os contornos se evidenciam, surgem desníveis, as formas se confundem. E as chapas continuam a enferrujar: em alguns anos, as mulheres não mais poderão ser reconhecidas.
Fonte: Marketing GrupoM8
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